Narrativas da COVID-19 no YouTube

Artigo avalia dezenas de vídeos com grande visibilidade; enquadramento técnico-científico predomina na amostra estudada.

 

Desde o anúncio dos primeiros casos de COVID-19 identificados na China, o YouTube tem se configurado como espaço de compartilhamento de informações e relatos sobre a doença. Nesse contexto, produtores de conteúdo ligados ou não à ciência têm divulgado vídeos sobre diversos aspectos da pandemia e seus impactos sobre a vida individual e coletiva. Pesquisadores do Instituto Nacional de Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia (INCT-CPCT) analisaram os vídeos mais relevantes disponibilizados na plataforma, com foco na análise de enquadramento ou framing – uma metodologia da área dos estudos de mídia que procura compreender embates que acionam a opinião pública e seus efeitos sobre a forma como as audiências percebem um problema.

 

O artigo, de autoria de Luisa Massarani e Antonio Brotas, da Fundação Oswaldo Cruz e do INCT-CPCT, e Márcia Cristina Costa, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, foi publicado na Revista Latinoamericana de Ciencias de la Comunicación. A equipe coletou vídeos sobre a COVID-19 em português do Brasil com mais de 100 mil visualizações, postados entre dezembro de 2019 e 15 de maio de 2020. Foram excluídos da amostra vídeos duplicados e materiais disponibilizados por canais noticiosos e oficiais da saúde. No total, foram analisados 65 vídeos, produzidos por 42 mediadores que atuam no YouTube, cujo alcance combinado ultrapassou 70 milhões de visualizações e 300 mil comentários.

 

Em quase metade dos vídeos (49,2%), o enquadramento predominante foi o técnico-científico, que compreende os discursos legitimados pela ciência, incluindo explicações sobre a doença, suas formas e prevenção e tratamento, com base em evidências científicas e referência a fontes e instituições de pesquisa, além de narrativas sobre como a ciência funciona. Os demais enquadramentos predominaram com menos frequência: sociocultural, 18,5%; político, 15,4%; religioso, 12,3%; e econômico, 4,6%. Vale notar que 63,1% dos vídeos apresentaram também enquadramentos secundários, entre os quais o frame sociocultural foi o que mais se destacou, aparecendo em 30% dos vídeos. Esse enquadramento inclui narrativas sobre modos de vida, mudanças no cotidiano durante a pandemia e aspectos culturais.

 

Segundo os autores, apesar da grande circulação de notícias falsas sobre a COVID-19 desde o início da pandemia, o YouTube não parece ser uma plataforma particularmente favorável à proliferação desse tipo de conteúdo: “A plataforma não se notabilizou como espaço de desinformação, seja pela ação da própria empresa, de exclusão de conteúdos nocivos à saúde pública, seja pela inundação de conteúdos favoráveis às práticas e políticas de enfrentamento à pandemia”.

 

Combate à desinformação é forte, mas não unânime

Muitos dos produtores de conteúdo parecem estar em consenso sobre a necessidade de vacina, isolamento social e outras questões relacionadas à pandemia. Porém, alguns vídeos de grande repercussão também semearam dúvida. Por exemplo, produções do canal Você Sabia? – responsável por seis entre os dez vídeos mais relevantes analisados, com um total de 24,6 milhões de visualizações – repercutiram teorias da conspiração amplamente disseminadas na internet. “As narrativas hesitantes e duvidosas deixam o clima de mistério no ar e nem sempre desmentem ou combatem integralmente a desinformação”, avaliam Massarani e colaboradores.

 

Uma narrativa frequente entre os mediadores religiosos foi falar da pandemia como oportunidade para repensar valores, com referências a profecias bíblicas e à ação divina. Este grupo também foi o maior responsável pelos vídeos de postura negacionista quanto ao conhecimento científico. Dos 13 vídeos produzidos por mediadores religiosos, nove ignoram ou refutam orientações da ciência.

 

Diferentes vozes

O perfil dos produtores de conteúdo variou entre youtubers  cujos canais não são especializados em ciências (30,8% dos vídeos), religiosos (20%), médicos (13,8%), youtubers divulgadores científicos (9,2%), pesquisadores (7,7%), youtubers de humor (9,2%), professor (4,6%) e profissionais da comunicação (4,6%). Vale notar, ainda, que, embora os youtubers de perfil mais variado tenha postado maior número de vídeos, os materiais publicados por youtubers voltados à divulgação científica tiveram, em média, mais visualizações. Por outro lado, youtubers de humor, responsáveis por apenas 6 dos vídeos sobre a COVID-19, tiveram mais visualizações e mais comentários do que os religiosos, que postaram mais que o dobro de vídeos.

 

Cerca de um terço dos vídeos avaliados não faz referência explícita às fontes de informação consultadas para elaboração do conteúdo. Entre as fontes mais citadas no restante dos vídeos, destacaram-se fontes oficiais de saúde (67%), material jornalístico (13%), pesquisadores e/ou instituições de pesquisa (12%), médicos (11%), material de redes sociais (7%) e astrólogo ou numerólogo (2%). Do total de vídeos analisados, a grande maioria (78,5%) propaga ou acata recomendações da ciência, enquanto 21,5% revelam uma postura de silenciamento ou negacionismo científico.

 

Um personagem de destaque na amostra foi o youtuber Felipe Castanhari, do canal Nostalgia. Seu vídeo “A origem do coronavírus”, com narrativa dinâmica e bem humorada, referendada em dados oficiais, foi o mais relevante da amostra, com quase 6 milhões de visualizações e 19 mil comentários. “Esse dado aponta a importância do influenciador na repercussão e engajamento de temas de ciência e saúde pública, principalmente para as gerações mais jovens, que seguem essas celebridades atuantes em várias mídias sociais”, diz o artigo.

 

Uma das contribuições importantes do estudo é a constatação de que não apenas cientistas, médicos e divulgadores científicos contribuíram para a disseminação de informações relevantes sobre a COVID-19. Influenciadores ligados a diferentes tipos de conteúdo também exerceram esse papel, embora, por vezes, tenha havido imprecisões ou paradoxos nos conteúdos apresentados. “Os dados sugerem a necessidade de capacitação em divulgação científica para mediadores não especializados, assim como buscar uma linguagem mais dinâmica e atrativa ao público do YouTube, em sintonia com o engajamento desses youtubers”, concluem os autores.

 

Referência:

MASSARANI, Luisa Medeiros; COSTA, Márcia Cristina Rocha; BROTAS, Antonio Marcos Pereira. A pandemia de COVID-19 no YouTube: ciência, entretenimento e negacionismo. Revista Latinoamericana de Ciencias de La Comunicación, [S. L.], v. 19, n. 35, p. 245-256, set. – dez.  2020. Disponível em: http://revista.pubalaic.org/index.php/alaic/article/view/1688. Acesso em: 03 fev. 2021.

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